Certa vez, ao justificar a sua obra, o pintor expressionista Salvador Dalí (1904-1989) afirmou: “Um dia terá que ser admitido oficialmente que o que batizamos de realidade é uma ilusão até maior do que o mundo dos sonhos”.
Há seis décadas meu corpo vem sendo triturado pelo tempo e por maus hábitos, mas preciso admitir (apenas por alguns instantes) que Dalí tinha razão, pois o ato de conviver nos leva a confrontar nossos sonhos com os sonhos alheios e, também, à inevitável frustração de perceber que a felicidade sonhada foi absorvida ou anulada pela fronha ou espuma do travesseiro; e, ainda, que a tal realidade poderia nos prover alguma alegria, desde que tivéssemos recursos para comprá-la.
Por outro lado, os pesadelos invadem sem cessar os nossos olhos e pensamentos. Cenas de guerras, enchentes, terremotos e outras violências naturais ou provocadas por seres tidos como “humanos”, mas que, por fim, agem como cães que urinam em algum canto para demarcar territórios que julgam ser de sua propriedade ou de seu povo ou raça, acabam por poluir nossas mentes, embora nos tragam importantes informações. E tristemente, neste caso, alegando questões religiosas e dogmas que apenas uma parcela entende e aceita, a hipotética urina de cão é composta por mísseis e balas de canhões.
Então, eu volto para a frase de Dalí: será que o que batizamos de realidade é uma ilusão até maior do que o mundo dos sonhos? Depois de refletir um pouco e de analisar o quanto há de pertinência ou delírio nesta pergunta, passei a acreditar que a realidade não é uma ilusão, e que os seus efeitos podem provocar medos e sustos maiores do que os piores pesadelos.
A realidade, enfim, existe. Ainda que não anule a nossa capacidade de sonhar.
A arte de Dalí e de seus companheiros expressionistas, embora já praticada no final do século XIX, passou a ganhar destaque a partir da segunda década do século XX, quando a Europa estava sendo devastada pela Primeira Guerra Mundial. A esta altura, alguns artistas passaram a retratar figuras deformadas e sombrias que traduziram o mundo violento e caótico de então, no qual os homens viviam sob desespero e aflição.
De lá para cá, com exceção da II Guerra, os conflitos armados entre povos e países passaram a ser mais localizados, principalmente pela produção em série de armas químicas e atômicas capazes de transformar o planeta em poeira e nossos corpos em lembranças, caso restasse algum ser vivente para registrar o acontecido.
Diante desta realidade que nada tem de ilusória, resta-nos ainda a capacidade de sonhar. Porém, nossos sonhos não podem ser limitados a um instante de fuga ou alienação, mas devem ser um motor que nos impulsione a provocar transformações positivas na sociedade.
Rua São João, 72-D, Centro
AV. Plínio Arlindo de Nês, 1105, Sala, 202, Centro