Sempre peço sugestões temáticas antes de escrever nova crônica. Às vezes, pouco inspirado ou preguiçoso, peço a alguém que me diga alguma palavra que me leve a um texto que seja ao mesmo tempo doce e reflexivo. Desta vez, me pediram para escrever sobre o vinho. Como sempre fui apreciador, vou agora reproduzir dois textos que publiquei no meu livro “PÓ”, editado no longínquo 2004.
O primeiro poema diz assim: VINHO // Deixa a minha língua navegar // no complexo vinho da tua saliva. // Deixa-me tornar embriaguez // o que seria apenas beijo. // Deixa que eu toque // com as franjas do meu corpo // a tua alma profunda // (segregada e manifesta em teus humores). // Deixa que eu a perceba // como a uma sereia de certezas // (içada de um imenso mar de dúvidas).
Depois deste poema, me foi encomendado um texto que não foi publicado em lugar algum, senão no meu próprio livro. O título é DECLARAÇÃO DE AMOR AO VINHO. Não sei se é crônica ou se é carta a um ser incorpóreo, mas se trata de uma declaração de amor, e estas jamais devem ser descartadas ou esquecidas, por mais distantes que estejam os amantes.
“Amado,
Eu te recebo com a alegria de quem recebe uma dádiva, pois em ti encontro a verdade: a minha verdade e todas as outras verdades do mundo.
Em teu corpo denso percebo os aromas frescos dos bosques, e da tua alma viva brotam elementos para apascentar o espírito. É através de ti que me chegam as melhores sensações, pois é através de ti que me chegam os bouquets dos profundos mistérios, onde as dúvidas desvanecem e o existir se torna claro e límpido.
É da tua natureza brilhante e transparente que chegam respostas reveladoras e a consolação para todas as dores; o bálsamo para combater feridas renitentes, o unguento que elimina cicatrizes e a verdade da madeira nobre e eterna, que amadurece e depura.
Em teu colo descanso, em teu colo me conheço e me reconheço melhor. Em ti decanto minhas mágoas e, contigo, compartilho raras lágrimas e bons sorrisos. Através de ti, revelo-me a mim mesmo, faço-me melhor e mais puro, faço-me mais profundo, mais íntegro e mais perfeito.
Quando o afinado reverberar do cristal anuncia a tua presença, é como se um coro de anjos abrisse o portal do Paraíso. É como se já não houvesse culpa ou pecado e todo e qualquer gesto humano traduzisse apenas o amor e suas virtudes.
Tratam-te como a um comum substantivo, mas és a mais abstrata e gentil das criaturas, pois na tua essência guardas o poder das fadas, e és capaz de preencher as minhas veias com o efeito de uma mágica anestesia.
Tens o dom de harmonizar almas com almas e almas com a Natureza e, assim, exerces a capacidade de encantar e aliciar, de transportar para longe todo o mal, de criar um tempo para a contemplação, para a afirmação íntima do bem, do belo e dos altos valores.
Inútil lembrar toda a simbologia que te cerca e todas as situações históricas em que estiveste envolvido. Inútil citar todas as celebrações de que participas; mas é imprescindível dizer dos teus bons efeitos: da paz e da alegria que proporcionas, do suave torpor que nos acomete e nos faz sonhar.
Sei que jamais serias capaz de trair ou frustrar expectativas, pois estás sempre preparado para o bem, para enriquecer visões e paisagens.
E mesmo agora, sob a sobra desta parreira imaginária e de seus cachos úmidos que refratam a luz, não sei se te vejo tinto, se te sinto branco ou se te quero riesling, mas sei que sempre serei fiel a ti.
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